O Direito do Trabalho encontra-se em um momento de profunda reflexão sobre seus conceitos clássicos, especialmente no que tange à configuração do vínculo empregatício e à autonomia da vontade. O princípio da primazia da realidade, embora fundamental, não mais se aplica de maneira puramente objetiva, devendo-se considerar a validade da escolha feita pelo prestador de serviços.
A discussão central envolve a harmonização dos requisitos do vínculo de emprego com a possibilidade de o trabalhador optar por formas contratuais alternativas, como a prestação de serviços por meio de pessoa jurídica (pejotização). Essa mudança de perspectiva exige uma análise mais complexa, que transcende a mera verificação formal dos fatos, adentrando o campo da validade do consentimento.
Licitude da terceirização e da pejotização
A terceirização é amplamente permitida no ordenamento jurídico brasileiro. A pejotização é reconhecida como uma forma de terceirização, devidamente albergada pela legislação atual, desde que observados certos limites.
A Lei nº 13.429/2017, que alterou a Lei nº 6.019/74, oferece o suporte legal para essa conclusão. O artigo 4º-A da Lei nº 6.019/74 trata da prestação de serviços a terceiros. Neste modelo, uma pessoa jurídica contratante delega atividades a outra Pessoa Jurídica (contratada).
A prestação de serviço pela PJ contratada pode ocorrer tanto por meio de empregados terceirizados quanto pelos seus próprios sócios, o que configura a pejotização.
O parágrafo 2º do artigo 4º-A da Lei nº 6.019/74 é crucial para validar essa estrutura. Ele estabelece explicitamente que não se configura vínculo empregatício entre a contratante e os trabalhadores terceirizados, nem entre a contratante e os sócios da pessoa jurídica contratada. Esse dispositivo sustenta a licitude de o sócio de uma PJ prestar serviços diretamente à contratante, caracterizando a pejotização.
Outro ponto de validação é a constitucionalidade do artigo 129 da Lei nº 11.196/2005, já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Em essência, o ordenamento jurídico atual permite e chancela a pejotização.
Análise do vício de consentimento e o ônus da prova
Superada a licitude da figura da pejotização, o cerne da controvérsia reside em determinar quando essa escolha contratual representa uma fraude. O desafio reside em conciliar a aplicação objetiva dos requisitos do artigo 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com a validade da escolha firmada pelo trabalhador.
A análise deve priorizar a investigação de eventual vício de consentimento ou vício social na escolha da prestação de serviços por meio de PJ.
Para lidar com o ônus da prova (quem deve provar a fraude ou a validade do contrato), adota-se o critério da hipossuficiência e hipersuficiência do prestador de serviço. Esse critério reconhece as diferentes realidades dentro do mercado de trabalho.
Se o prestador de serviços for considerado hipossuficiente – geralmente caracterizado por salário baixo e trabalho de natureza manual ou braçal – aplica-se a presunção de vulnerabilidade. Nesses casos, o ônus de provar que a pejotização não constitui fraude contratual recai sobre a empresa contratante.
Se o prestador de serviços for hipersuficiente – indivíduo com alta qualificação profissional e alta remuneração – presume-se que a escolha pela pejotização foi econômica e vantajosa para ele. Em tal cenário, o ônus de provar a coação ou a fraude para desconstituir a PJ e reconhecer o vínculo de emprego deve recair sobre o próprio prestador de serviços.
A regra geral é que ninguém faria uma escolha desvantajosa ou coagida se a PJ fosse mais benéfica. Assim, a hipossuficiência ou hipersuficiência serve como balizador na distribuição do ônus probatório.
Debate sobre competência jurisdicional
A questão da competência para dirimir conflitos envolvendo a descaracterização da pejotização é complexa. Existem duas soluções tecnicamente viáveis para o processamento dessas demandas:
A primeira solução consiste em manter a competência plena da Justiça do Trabalho. Nesse cenário, a arguição de fraude na pejotização (relação comercial aparente entre duas PJs) é analisada como uma questão incidental ou prejudicial ao pedido principal, que é o reconhecimento do vínculo de emprego. O juiz trabalhista analisa a existência ou não da fraude para, então, prosseguir com a análise dos requisitos celetistas. A decisão sobre a questão prejudicial da fraude não faz coisa julgada, mas resolve o caso concreto.
A segunda solução propõe a cisão da competência. Nesse caso, a questão prejudicial relativa à fraude e à validade da relação comercial entre as duas PJs é delegada para a Justiça Comum, que tem competência para julgar relações civis e comerciais. Uma vez que a Justiça Comum determine se houve ou não fraude na constituição ou operação da PJ, a matéria retorna à Justiça do Trabalho para o julgamento final sobre a existência do vínculo de emprego com a contratante. Essa cisão baseia-se em precedentes que tratam de relações de representação comercial ou transporte autônomo, em que a relação aparente não envolvia, inicialmente, a regulação trabalhista.
Fonte: Conjur